O termo grego “pleroma” significa plenitude, e pode ser encontrado nas páginas sagradas em diversas passagens.
A Bíblia fala do Pleroma Divino, isto é, da Plenitude de Deus, da qual devemos ser cheios (Ef.3:19). Tal plenitude nos está acessível por meio de Cristo Jesus. Afinal, “n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl.2:9). Tanto João quanto Paulo são unânimes em afirmar que “da sua plenitude todos nós recebemos” (Jo.1:16), temos, portanto, “a plenitude em Cristo” (Cl.2:10).
Embora já a tenhamos recebido, devemos buscar nos encher constantemente dela. E por quê deveríamos buscar o que já temos? Não há qualquer paradoxo aqui, embora possa parecer. Afirmar que temos a plenitude, é o mesmo que dizer que ela nos está acessível. É como na união conjugal. O marido possui a esposa, e vice-versa, entretanto, ambos precisam buscar um ao outro para que possam usufruir as benesses conjugais.
O Espírito Santo é Deus em Sua plenitude. Nós não O recebemos por medidas (Jo.3:34). Ou O temos, ou não O temos. Não há como recebê-lO em porções. Ao recebê-lO, estamos recebendo a Plenitude, o Pleroma Divino. Entretanto, Sua presença deve ser cultivada, através de um relacionamento íntimo e perene. Por isso Paulo nos admoesta a que não extingamos o Espírito (1 Ts.5:29). Nesta passagem Ele é comparado ao fogo, que para ser mantido precisa de combustível. Nossa comunhão com Ele é o combustível que O manterá aceso em nosso ser.
Não possuímos a plenitude de Deus em nós mesmos, mas em Cristo. É por estarmos enxertados n’Ele, a Videira Verdadeira, que temos participação em Sua seiva. Tornamo-nos “participantes da natureza divina” (2 Pe.1:4), pois “o que se une ao Senhor é um espírito com Ele” (1 Co.6:17).
O único Ser em quem habita a Plenitude da Divindade é Jesus. Só a recebemos por estarmos n’Ele. Jamais alcançaremos algum tipo de auto-suficiência espiritual. Tudo o que somos e temos deriva-se d’Ele.
E por isso, nenhum ser em todo o Universo pode vangloriar-se. Só podemos nos gloriar naquilo de que somos a origem. Sobre isso, escreve Paulo: “...Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (...) Pois quem te faz diferente? E que tens que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?”(1 Co.1:31, 4:7). A conclusão de Paulo é que ele só poderia gloriar-se em sua fraqueza, uma vez que esta não provinha de outro ser, mas de si mesmo (2 Co.12:9).
Para que sejamos cheios do Pleroma Divino, temos que admitir nossa fraqueza e insuficiência, e reconhecer que é a Graça de Deus que nos basta, e que o Seu poder se aperfeiçoa em nossa fraqueza. Em outras palavras, Sua suficiência cabe como uma luva em nossa deficiência.
A experiência pleromática deve ser antecedida pela experiência kenótica. A palavra kenósis é exatamente o oposto de pleroma. Para que Jesus fosse exaltado, recebendo de volta toda a glória que antes havia tido com o Pai, Ele precisou esvaziar-Se (kenósis). E Paulo nos ordena a ter o mesmo sentimento que houve em Cristo (Fp.2:5). Não há como negociar isso. O preço do Pleroma é o Kenósis. Se quisermos o que só Ele tem, temos que renunciar o que temos. Se quisermos o que Ele é, temos que abrir mão de nossa vaidade, e admitir que nada somos à parte d’Ele. Nossa dignidade não é algo intrínseco, inerente a nosso ser, e sim algo que deriva-se d’Ele.
Vemos o princípio kenótico não apenas na encarnação de Cristo, mas até mesmo na Criação. É interessante o comentário que Simone Weil faz acerca disso: “A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes dEle e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele.” E mais: “Do mesmo modo como Deus, na criação, renuncia a ser tudo, devemos renunciar a ser alguma coisa”.[1]
Antes da Criação, Deus era a única realidade. Nada havia além d’Ele. O que O motivou a criar? Se Ele é auto-suficiente, se nada Lhe falta, por quê criar algo além de Si mesmo? Será que o Pai, o Filho e o Espírito Santo não Se bastavam? Claro que sim. Deus não criou nada visando suprir alguma necessidade. A única resposta plausível aqui é o amor. É o amor que nos impulsiona para além de nós mesmos. Foi por amor que Deus deixou de ser o Único ser existente, criando um Universo composto de miríades de seres animados e inanimados. O amor que une as Pessoas da Divindade agora deveria ir além delas mesmas. Isso só seria possível mediante um ato criador. Criar implicaria numa espécie de esvaziamento da Divindade. Agora, Deus tem que conviver com outros seres além de Si mesmo. O Pleroma Divino deve conviver com o pleroma criado, não como uma extensão de Si mesmo, mas como um ser à parte, com o qual pode comunicar todo o Seu amor.
1. O Pleroma Criado
A Bíblia não fala apenas do Pleroma Divino, mas também fala daquilo que chamo de Pleroma Criado. Trata-se da Criação como um todo. Paulo diz que “a terra é do Senhor, e toda a sua plenitude” (1 Co.10:26). Um Salmo diz: “Teus são os céus, e tua é a terra; o mundo e a sua plenitude tu os fundaste” (Sl.89:11).
O Pleroma Divino pode ser representado pelo número 3. Pai, Filho e Espírito Santo constituem o único Deus. Nas palavras de João, o discípulo amado, “três são os que dão testemunho no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um” (1 Jo.5:7). Não se trata de três pessoas excludentes, mas de três pessoas inclusivas. O Pai está no Filho, e o Filho está no Pai. Não se pode chegar ao Pai, senão pelo Filho. E o Espírito Santo procede da unidade entre Pai e Filho. Jamais, nem agora, nem na eternidade, veremos as três pessoas de maneira distinta. Só há um Trono no céu, onde está assentado Aquele em quem Se encontra a Plenitude da Divindade. Se perguntarmos: Onde está o Pai? Ele nos responderá da mesma maneira como respondeu a Filipe: “Quem me vê, vê o Pai”, “Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim?” (Jo.14:9-10).
Todos os números usados para representar Deus são ímpares (1,3 e 7). E por quê? Porque Deus é ímpar. “A quem, pois, fareis semelhante a Deus? Com que imagem o comparareis? (Is.40:18). “Eu sou Deus , e não há outro; eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim” (Is.46:9b). Ele é o Único Ser auto-suficiente. Daí ter Se apresentado a Abraão como El Shadday, que literalmente significa “Aquele que Se basta”.
Já os números usados para representar a Criação são sempre pares (2, 4, 6, 12 etc.). Dentre esses números, o principal é 4, pois representa o Pleroma Criado, bem como o propósito divino para todo o Universo criado.
Entretanto, o número pleromático por excelência é o 7. Trata-se da soma do número do Criador (3) com o número da Criação (4). O número 7 representa a relação de amor entre Deus e Sua Criação. Embora seja auto-suficiente, Ele não está fechado em Si mesmo. Além de Todo-poderoso, Ele também é todo-amoroso. Ele não é apenas transcendente, mas também condescendente. Como escreveu Christian A. Schwarz: “Ele desceu da transcendência para a imanência, humilhou-se e caminhou em nossa direção”.[2]
O número 7 representa o propósito último do Criador. Que propósito será este? “Que Deus seja tudo em todos” (1 Co.15:28b).
É disso que Paulo fala no primeiro capítulo de sua maravilhosa epístola endereçada aos Efésios:
“E desvendou-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir em Cristo TODAS AS COISAS, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que
estão na terra”.
Efésios 1:9-10.
Aleluia! Quão maravilhosa revelação teve o apóstolo Paulo! Na plenitude dos tempos, quando Cristo veio ao mundo, e entregou-Se na Cruz, Deus fez convergir n’Ele todas as coisas, para que por meio de Seu sacrifício, a Criação fosse receptáculo do amor do seu Criador. Deus amou o mundo de tal maneira que não Lhe restou alternativa senão dar o Seu Unigênito a fim de redimi-la de seu estado de corrupção.
Através desse gesto de amor, a criação engravidou-se de “um novo céu e uma nova terra”. Na Cruz, o Criador e a Criação uniram-se para gerar um novo cosmos. Não mais corruptível, pois em vez de criado, agora é gerado. Afinal, as coisas criadas, por serem coisas abaláveis, devem ser removidas, para dar lugar às inabaláveis, pois estas permanecem (Hb.12:27). Agora, no presente estágio, Paulo afirma que “a criação geme como se estivesse com dores de parto” (Rm.8:22). A concepção do novo céu, e da nova terra deu-se na Cruz. A hora do parto se aproxima! As contrações já são sentidas, e estão cada vez mais fortes. A qualquer momento, quando Cristo vier em glória, “a própria criação será libertada do cativeiro da corrupção” (v.21).
Para que esta gravidez acontecesse, Cristo deveria abarcar em Sua natureza sui generis, não apenas o Pleroma Divino, mas também o Pleroma Criado. É disso que Paulo fala, ao declarar que “foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse” (Cl.1:19). Ele não está falando ali do Pleroma Divino. Disso ele vai falar no versículo 9 do segundo capítulo desta mesma epístola.
Em Cristo, céu e terra contraem núpcias. Criador e criação se unem matrimonialmente, para conceber um ente incorruptível. Assim como o Espírito Santo utilizou-Se do ventre de Maria, para ali gerar o Filho Eterno de Deus, Ele Se utiliza do ventre da Terra para nela gerar uma nova criação. O salmista prevê isso quando escreve: “Quando envias o teu Espírito, são criados, e renovas a face da terra” (Sl.104:30).
Ao encarnar-se, o Filho de Deus estava assumindo um corpo físico, que encerrava em si todos os elementos de que o Universo físico é composto.
O corpo humano em si trás tal composição. Somos da idade do Universo. Num único ato primordial, Deus criou os céus e a terra. Todos os átomos de que é composto o Universo foram criados simultaneamente.
Há muita disputa nesse terreno entre os criacionistas[3] e evolucionistas teístas[4]. Cremos no que dizem as Escrituras: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn.1:1). Tudo foi criado logo no início. Ou como diz o relato bíblico: “Estas são as origens dos céus e da terra, quando foram criados. NO DIA em que o Senhor Deus fez a terra e os céus” (Gn.2:4). Cremos, portanto, em uma criação instantânea. Deus não precisaria de mais que um milésimo de segundo para criar todo o Universo. Os demais dias, (sejam eles de 24 horas literais ou eras inteiras de bilhões de anos, não vem o caso), foram usados para organizar o que fora criado. Tudo o que fora criado do nada no primeiro instante, agora recebia a ordem divina de “produzir”. A terra, mesmo sendo matéria inanimada, recebera a ordem: “Produza a terra relva, ervas que dêem semente, e árvores frutíferas...”(Gn.1:11). A água, que segundo os cientistas, foi o berço da vida, recebeu de Deus a ordem: “Produzam as águas enxames de seres viventes...” (1:20).
No sexto dia da Criação, Deus utilizou-Se da matéria pré-criada para formar aquele que seria a coroa da Criação, a Sua obra-prima. Os mesmos elementos químicos de que são feitas as galáxias, as estrelas, os planetas, transitam em nosso corpo, em nossas veias, em nossos ossos, e em nosso cérebro. Os reinos animal, vegetal e mineral co-habitam em nossos corpos, manifestando-se através de nossos tecidos, cabelos e ossos.
É interessante o relato da criação do homem encontrado no Livro dos Segredos de Enoque: “No sexto dia fiz uso da minha sabedoria para criar o homem de sete graus de densidade: um, a sua carne da terra; dois, o seu sangue do orvalho; três, os seus olhos do sol; quatro, seus ossos da pedra; cinco, a sua inteligência da vivacidade dos anjos e da nuvem; seis, suas veias e seu cabelo das plantas da terra; sete, a sua alma do meu sopro e do vento (...) Criei o homem da natureza invisível e visível (...) Dei-lhe um nome baseado nas quatro partes componentes, do leste, oeste, sul e norte, e designei-lhe quatro estrelas especiais, e o chamei pelo nome de Adão”.[5]
O ferro que corre por nossas veias, o fósforo e o cálcio que fortalecem nossos ossos e nervos, os 18% de carbono e os 65% de oxigênio demonstram claramente que somos o espelho do universo.
O nosso corpo físico é como a própria Terra, em cuja composição a matéria vai desde o mineral bruto, as rochas, as pedras, até os rios e oceanos, que com a ação do calor, se tornam gasosos, alimentando a camada fluídica que envolve o planeta. O corpo humano também possui todos os estágios da matéria deste mundo, do mais denso, compacto, como os ossos, os dentes, as unhas, ao mais fino, neste caso os nervos, que, dentro de sua própria composição de neurônios, possuem estágios que chegam ao gasoso. Sem contar o fato de que nosso corpo possui a mesma proporção de água (70%) e sal que o planeta Terra.
O que nos distingue dos animais é que possuímos a imagem e a semelhança divinas. Somos dotados de consciência. Fomos agraciados com a capacidade de reflexão.
Jesus Cristo abarcou em Sua própria natureza, ao mesmo tempo, a Criação e o Criador.
Tal combinação era imprescindível para que “por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus” (Cl.1:20b).
Agora, através de Sua Cruz, todas as coisas, tanto as visíveis, quanto as invisíveis, passam a gravitar em torno d’Ele, o Deus-Homem. O desequilíbrio provocado pelo pecado é chegado ao fim. O universo volta à sua rota normal, em direção àquEle, que não é apenas o Alfa, mas também Ômega. Tudo quanto foi feito “por Ele”, tem que existir “para Ele” (Cl.1:16).
Uma vez que a Terra fora reconciliada com o Seu Criador, ela está pronta para receber os corpos dos santos, como sementes, que no Grande Dia do Senhor, ressurgirão incorruptíveis.
A Terra, antes estéril, do ponto de vista espiritual, agora está novamente fértil, e engravidou-se de uma nova Terra. A Palavra de Deus, a mesma que deu origem a todas as coisas, agora Se materializou em Cristo, a fim de fecundar o Universo criado, para que dê origem a uma nova criação, não mais submetida ao pecado, mas incorruptível. O novo céu e a nova terra nada mais são do que o universo livre da corrupção.
É nessa Terra fértil pelo sacrifício de Cristo, que nossos corpos são depositados como sementes. “Semeia-se o corpo em corrupção, é ressuscitado em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, é ressuscitado em glória. Semeia-se em fraqueza, é ressuscitado em poder. Semeia-se corpo animal, é ressuscitado corpo espiritual. Se há corpo animal, há também corpo espiritual (...) num momento, num abrir e fechar de olhos, ao soar a última trombeta. Pois a trombeta soará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados” (1 Co.15:42b-44, 52).
O sangue de Jesus tornou fértil a Terra, para que as sementes que nela forem depositadas, germinem e dêem origem a novos corpos, incorruptíveis, e gloriosos.
Quando Deus abrir o ventre da Terra para que esta conceba nossos novos corpos, ela mesma será completamente transformada e restaurada. É só isso que a criação aguarda: O momento do parto; a manifestação dos filhos de Deus (Rm.8:19).
Não fosse a obra consumada na Cruz, a Terra não teria devolvido o corpo do Senhor, a fim de que Ele não visse nenhuma corrupção (At.13:37).
Entretanto, Cristo era a Semente Incorruptível que precisava ser lançada na Terra, para que ela se engravidasse. Por isso Jesus Se compara a um grão de trigo, que ao cair na terra, deve morrer, para que possa dar muito fruto, caso contrário, fica ele só (Jo.12:24).
Ao voltar do ventre da Terra, Jesus apresentou-Se em um Corpo Incorruptível, capaz de atravessar até paredes, ainda que mantivesse as cicatrizes provocadas pelo cravos. Essas, contudo, foram mantidas como emblemas do preço que precisou ser pago pela redenção do Seu povo, e de toda a criação.
De acordo com Paulo, ao ressuscitar dentre os mortos, Cristo “foi feito as primícias dos que dormem” (1 Co.15:20b). E mais: “Pois assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo. Mas cada um por sua ordem: Cristo as primícias, depois os que são de Cristo, na sua vinda” (vv.22-23).
A ressurreição de Cristo inaugurou uma nova ordem no universo. A corrupção foi vencida pela incorruptibilidade. Nosso destino é experimentar o mesmo tipo de ressurreição do qual Cristo foi o precursor.
Paulo anuncia que “esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo de humilhação, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas” (Fp.3:20b-21).
Assim como Deus preparou o ventre bendito de Maria para que nele fosse gerado o Seu Filho Amado, Deus preparou a Terra como ventre onde o Espírito Santo fará gerar nossos novos corpos.
A ressurreição de Cristo é o protótipo da nossa ressurreição.
Mas não se trata de corpos espirituais? Paulo não afirma que são celestes, e não terrestres?
São espirituais porque não estarão submetidos aos caprichos e tentações carnais. Serão corpos inteiramente submetidos ao espírito. Nosso destino não é vagar pelas regiões etéreas como almas desincorporadas. Quando falamos em “corpo” estamos nos referindo a algo que pode ser tocado, assim como o foi o corpo de Jesus. Após ressuscitar, Jesus não apenas foi tocado por Seus discípulos, mas também comeu com eles. Um fantasma não pode ser tocado, quanto mais comer. Lembrando o ditado popularizado pela teologia da missão integral: “corpo sem espírito é defunto; espírito sem corpo é fantasma”.
Ora, se nossos corpos serão semelhantes ao d’Ele, é razoável supor que serão corpos físicos, embora não carnais, nem tampouco corruptíveis. Se vamos poder comer? Por que não? Agostinho acreditava que os justos ressurrectos poderão comer, não por necessidade, mas por prazer.
Quanto ao fato de ser um corpo celestial, em vez de terreno, significa que não será fruto da conjunção carnal de um casal, como é nosso corpo atual. Em vez de produto da fecundação do óvulo da mulher pelo sêmen do homem, será produto da fecundação da nova terra pelo sêmen do céu, que é a Palavra de Deus, a semente incorruptível.
A Terra apenas devolverá as partículas de que éramos formados, para que delas Deus reclame nosso corpo.
Essa tem sido uma posição muito controversa. Desde o início do cristianismo, tem havido amplos debates sobre isso. Como a Terra poderá devolver nossos corpos para serem transformados? Nós sabemos que os átomos que formam nosso corpo hoje, amanhã farão parte da composição de outros corpos.
Cada vez que inspiramos recebemos do meio 1022 átomos e uma parte significativa dessa enorme quantidade de material entra no nosso corpo para formar as células do coração, do cérebro, dos rins, dos neurônios e etc. Cada vez que aspiramos retiramos de nosso corpo a mesma quantidade de átomos. Nós literalmente aspiramos pequenas partes do nosso cérebro, do nosso coração e de nossos rins. Podemos concluir que a cada segundo, nosso corpo está se renovando, transformando-se mais rapidamente do que quando trocamos de roupa. De certa forma, podemos dizer que ninguém pode apoiar-se duas vezes sobre a mesma carne e ossos. Nas últimas 3 semanas 1015 átomos têm fluido através do nosso corpo para ir para corpos de outras espécies neste planeta. Estudos com isótopos radioativos mostram, com grande elegância, que trocamos 98% dos átomos de nosso corpo em menos de um ano e todos os átomos em dois anos e meio. Nós desenvolvemos um novo fígado a cada 6 semanas, uma nova pele uma vez por mês, um novo revestimento do estômago a cada 5 dias, um novo esqueleto a cada três meses. Mesmo as nossas células do cérebro com as quais pensamos, que são constituídas de carbono, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio, não são as mesmas do ano passado. Portanto, nosso corpo atual não é o mesmo que utilizamos enquanto aprendíamos a andar.
Em todo o tempo, compartilhamos intimamente o nosso corpo com outros corpos à nossa volta. Já dizia o poeta americano Walt Whitman: "Todos os átomos que pertencem a você também pertencem a mim". Embora se trate de poesia, esta afirmação não é apenas metafórica.
Estudos com isótopos radioativos têm mostrado que, neste instante de nossa existência possuímos um milhão de átomos que poderiam ter pertencido um dia ao corpo de Eisnten, de Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Napoleão Bonaparte. Simplesmente não podemos nos separar fisicamente de nada e de ninguém que já tenha passado por este mundo.
Entretanto, em tempo de avanço científico, onde se cogita até a possibilidade de clonagem humana, Deus não precisaria de mais do que uma mísera partícula daquilo que foi nosso corpo, para poder restaurá-lo completamente.
Alguns preferem crer que Deus sequer necessite dessas partículas originais. Não queremos debater isso aqui, mas basta-nos ressaltar que para Deus nada é impossível. Se Ele foi capaz de ressuscitar a Lázaro, depois de quatro dias de sepultamento, já em estado de putrefação e decomposição, de quê Ele não seria capaz?
E quanto aos que foram queimados? E quanto aos que foram tragados pelo mar? O livro de Apocalipse parece encerrar a questão, afirmando que no Juízo, “o mar entregou os mortos que nele havia e a morte e o além deram os mortos que neles havia” (Ap.20:13a). Como se dará isso? É preferível calar-nos reverentemente, a ficar fazendo especulações inúteis.
De uma coisa devemos estar certos: a obra de Deus abrange o todo. Ela é pleromática. A boa, perfeita, e agradável vontade de Deus deve ser cumprida “assim na terra, como no céu”.
Um novo céu surgiu, para que pudesse receber o Novo Homem, Jesus. Agora, “convém que o céu o contenha até os tempos da restauração de tudo” (At.3:21). Só um novo céu poderia conter alguém que fosse Deus e Homem ao mesmo tempo. E Ele “subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas” (Ef.4:10). Elias e Enoque subiram ao céu, mas jamais poderiam subir “acima de todos os céus”.
O novo céu e a nova terra são os dois lados de uma realidade pleromática. Esses dois mundos divorciados pelo pecado, agora foram reconciliados pela Cruz. Ambos convergiram em Cristo, e formaram novamente a unidade para a qual foram criados. Nas palavras do célebre teólogo Dietrich Bonhoeffer: “Não existem duas realidades, mas uma só realidade, que é a realidade de Deus, a qual em Cristo manifestou-se à realidade deste mundo. A realidade de Cristo abrange também a realidade do mundo. O mundo por si só, independentemente da Revelação de Deus em Cristo, não tem realidade nenhuma (...) Não há, portanto, duas esferas, mas uma só, a da realização de Cristo, em que se encontram unidades a realidade de Deus e a do mundo”.[6]
A Jerusalém Celeste, “a qual é mãe de todos nós” (Gl.4:26), “nossa pátria que está nos céus” (Fp.3:20), agora é vista descendo do céu (Ap.21:2, 10). O mar já não existe! Isto é: aquilo que separava, já não separa mais. Em Cristo, tudo se fez novo. De maneira que, desde já, podemos fazer coro com o escritor de Hebreus, que afirmou convictamente que já temos chegado “à cidade do Deus vivo, à Jerusalém Celestial” (Hb.12:22).
Por meio de Cristo, já atravessamos os portões da cidade santa, e estamos assentados com Ele nas regiões celestiais.
Até aqui, vimos que em Cristo habita o pleroma divino e o pleroma da criação. E que por isso, o mundo visível (material) e invisível (espiritual) foram reconciliados.
Já vimos que a conseqüência disso é que a redenção efetuada por Cristo deve abarcar todo o universo criado, inclusive o nosso ser por inteiro, tanto o espírito quanto o corpo.
No próximos capítulos vamos focar as dimensões do amor de Deus reveladas em Sua obra, tanto na criação, quanto na redenção e restauração de todas as coisas.
[1] Citado por Comte-Sponville em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
[2] Mudança de Paradigma na Igreja, p.54
[3] Criacionistas – Crêem no caráter literal do relato de Gênesis 1, inclusive nos dias da Criação como sendo literais, isto é, de 24 horas cada.
[4] Evolucionistas teístas – Crêem na criação como sendo um ato progressivo de Deus, e procuram conciliar a teoria evolucionista de Darwin com o relato bíblico, que segundo eles, deve ser entendido de forma literária, e não literal. Um dos maiores expoentes desse pensamento foi Teilhard de Chardin, sacerdote jesuíta francês.
[5] Livro dos Segredos de Enoque XXX:10,12B,13A – Embora considerado apócrifo em nossos dias, este livro era muito estimado durante os primeiros anos do cristianismo.
[6] R.MARLÉ, Dietrich Bonhoeffer, Témoin de Jésus-Christi parmi ses Frères, Tournai, 1967, p.210
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